“Maior erro dos progressismos foi não ter tocado a riqueza; agora vemos avanço continental das direitas”

                                                                            
Raphael Sanz (*)


O ano se en­cerrou em todo o con­ti­nente com enormes re­tro­cessos para os tra­ba­lha­dores. Macri e Temer apro­fundam pa­cotes de ajustes e ace­leram me­ga­em­pre­en­di­mentos li­gados à mi­ne­ração e ao agro­ne­gócio nos dois mai­ores países, o Chile vive o apro­fun­da­mento de seu já con­so­li­dado mo­delo ne­o­li­beral e a Ve­ne­zuela segue imersa em grave crise. No campo e na ci­dade, o avanço das di­reitas e a in­ca­pa­ci­dade de ar­ti­cu­lação das es­querdas são traços desta con­jun­tura, sobre a qual en­tre­vis­tamos Raúl Zi­bechi, jor­na­lista e ci­en­tista po­lí­tico uru­guaio que es­tuda mo­vi­mentos so­ciais de todo o con­ti­nente há mais de 20 anos.

Logo no co­meço, Zi­bechi ex­plica o que de­fine como mo­delo ex­tra­ti­vista. Re­su­mi­da­mente, um mo­delo que no campo so­cial e cul­tural des­trói todo te­cido co­mu­ni­tário para, no campo po­lí­tico e econô­mico, de­sen­volver o mo­delo ne­o­li­beral a partir da sub­tração dos bens co­muns que as de­mo­cra­cias, em te­oria, de­ve­riam de­fender. 

E sobre essa “crise das so­ci­e­dades de­mo­crá­ticas”, vê com im­por­tância tanto um “re­ar­ranjo do campo po­pular”, como “um pro­cesso de tran­sição também no ter­reno das classes do­mi­nantes”. Zi­bechi ainda ex­plica que a perda de he­ge­monia de an­tigas formas de con­trole so­cial li­gadas à igreja e à fá­brica - ao pa­nóp­tico de Fou­cault - faz com que o sis­tema aja no sen­tido de so­fis­ticar ve­lhos mé­todos e criar novos.

“As ONGs são uma forma de con­trolar dis­si­dên­cias, outra é o en­di­vi­da­mento de que fa­lava De­leuze e hoje no Brasil tem um papel muito im­por­tante. Os fe­mi­ni­cí­dios, o nar­co­trá­fico e a Po­lícia Mi­litar, é claro, também são formas de con­trole so­cial, pelo medo e vi­o­lência. E as classes do­mi­nantes estão in­ves­tindo em pes­quisas sobre como am­pliar esse leque de tá­ticas de con­trole so­cial através da in­te­li­gência ar­ti­fi­cial, de todo o rol ci­ber­né­tico e das novas tec­no­lo­gias – além, é claro, de apagar ex­pe­ri­ên­cias li­ber­ta­doras como a de Paulo Freire da me­mória das pes­soas, como vemos nas in­ten­ções do mo­vi­mento Es­cola Sem Par­tido”, ana­lisou.

Em­bora veja em todo o campo po­pular o in­te­resse com­par­ti­lhado em der­rotar o mo­delo ex­tra­ti­vista, Zi­bechi alerta que es­pe­ci­al­mente no Brasil e na Ar­gen­tina há uma ten­dência dentro do campo po­pular que pode se chocar in­ter­na­mente: a que antes de com­bater os avanços do grande ca­pital está mais pre­o­cu­pada em de­volver Lula e Cris­tina aos go­vernos dos seus países. 

“Os mo­vi­mentos po­pu­lares estão nos in­di­cando que para cons­truir um fu­turo co­le­tivo, pri­meiro temos de der­rubar este mo­delo ne­o­li­beral, fi­nan­ceiro e ex­tra­ti­vista. E que não é pos­sível con­se­guir isso a partir dos go­vernos, tal der­ru­bada tem de partir das ruas. Isso im­plica que os se­tores po­pu­lares, para darem fim ao mo­delo ne­o­li­beral, devem sair às ruas e co­locar em xeque a go­ver­na­bi­li­dade atual”, cri­ticou.

Leia, abaixo, a en­tre­vista na ín­tegra.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em se­tembro do ano pas­sado, tra­du­zimos um ar­tigo teu aqui no Cor­reio in­ti­tu­lado “O ce­nário re­gi­onal de­pois de Dilma”, no qual ana­lisou que o en­cer­ra­mento de um ciclo pro­gres­sista no Brasil faria uma es­pécie de efeito do­minó em toda a Amé­rica La­tina. Como avalia o con­ti­nente hoje, das dis­putas na Pa­tagônia e nos rios amazô­nicos bra­si­leiros ao novo golpe elei­toral em Hon­duras?

Raúl Zi­bechi: Sem dú­vidas vi­vemos um pro­cesso de di­rei­ti­zação muito forte em todo con­ti­nente. Esse pro­cesso, a meu modo de ver, co­meça em junho de 2013 porque a es­querda não foi capaz de com­pre­ender que havia uma de­manda na so­ci­e­dade por mais igual­dade e de­mo­cracia, e assim deixou o campo livre para a di­reita.

De­pois, veio a der­rota de Cris­tina Kir­chner na Ar­gen­tina e o triunfo de Macri. E logo um pro­cesso de mu­danças muito forte no Equador – onde apesar do novo pre­si­dente Lenin Mo­reno ser do par­tido de Correa, fez uma gui­nada pri­meiro contra o ex-pre­si­dente; agora, não se sabe se irá para a di­reita ou não.

Po­demos dizer que o pro­gres­sismo chegou a um li­mite. In­clu­sive em um país como a Ve­ne­zuela é evi­dente que o pro­cesso de go­ver­na­bi­li­dade en­frenta muitas di­fi­cul­dades e são os se­tores po­pu­lares que en­caram as mai­ores di­fi­cul­dades de­cor­rentes.

Fi­nal­mente, temos a atual si­tu­ação de Hon­duras que também mostra uma forte pre­sença da di­reita, a gestar a atual fraude elei­toral no país. Re­su­mindo, esta ofen­siva da di­reita tem duas partes.

Por uma parte, a as­censão de uma nova di­reita, muito mais mi­li­tante e ativa nas ruas como é o caso do Mo­vi­mento Brasil Livre e do Es­cola Sem Par­tido, no Brasil.

Por outro lado, essa di­reita se apro­veita das de­bi­li­dades da es­querda que, por sua vez, não foi capaz de tomar a ofen­siva contra a di­reita e os meios de co­mu­ni­cação da di­reita – contra toda a es­tru­tura so­cial e econô­mica que fa­vo­rece a di­reita. E desse modo deixou o campo aberto para a ofen­siva que es­tamos vi­vendo.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que de­fine como “mo­delo ex­tra­ti­vista” e como este mo­delo con­tri­buiu para a der­ro­cada dos go­vernos pro­gres­sistas?

Raúl Zi­bechi: O ex­tra­ti­vismo é um mo­delo econô­mico, po­lí­tico, so­cial e cul­tural. No ter­reno econô­mico con­siste na trans­for­mação dos bens co­muns – por exemplo a água – em mer­ca­do­rias. Pode ser de­fi­nido como a he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro e a acu­mu­lação por usur­pação. É o roubo dos bens na­tu­rais. Seu prin­cipal efeito so­cial é des­truir as re­la­ções so­ciais a partir da des­truição de todo te­cido so­cial e co­mu­ni­tário.

Ao des­truir o te­cido so­cial e co­mu­ni­tário este mo­delo gera um re­po­si­ci­o­na­mento das classes mé­dias, altas e da bur­guesia; uma des­po­li­ti­zação dos se­tores po­pu­lares que são in­te­grados ao pacto pro­posto pelos de cima, através do con­sumo – e o con­su­mismo des­po­li­tiza e de­sor­ga­niza. 

Dessa ma­neira, con­tribui com os dois prin­ci­pais as­pectos da con­jun­tura atual, que são a ofen­siva de uma nova di­reita e o en­fra­que­ci­mento pro­fundo do campo po­pular e dos mo­vi­mentos so­ciais.

Esses fa­tores têm, sim, muito a ver com o triunfo do mo­delo ex­tra­ti­vista.

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual o papel dos go­vernos pro­gres­sistas du­rante a for­mação da ali­ança entre elites e classes mé­dias – es­pe­ci­al­mente no Brasil e na Ar­gen­tina?

Raúl Zi­bechi: Acre­dito que a ali­ança entre as classes altas e mé­dias é uma ali­ança po­lí­tica para a luta de classes a partir da di­reita. A di­reita aprendeu que tem um ini­migo.

Hoje no Brasil, esse ini­migo é visto - no caso do Es­cola Sem Par­tido - nos pro­fes­sores, do­centes e em tudo o que lembre Paulo Freire e a po­li­ti­zação da pe­da­gogia. O MBL também tem seus ini­migos bem de­fi­nidos. Já a es­querda em ne­nhum mo­mento foi capaz de dizer “este é o meu ini­migo”. Lula sempre dizia que o Brasil não tinha ini­migos. E seu pró­prio go­verno não iden­ti­fi­cava ini­migos. Tanto que ne­go­ciava com a Rede Globo até que fi­nal­mente a Globo jogou um im­por­tante papel na der­ru­bada de Dilma.

O fato de não olhar para um ini­migo im­plica que não há or­ga­ni­zação para lutar contra esse ini­migo. Ou seja, não há um ob­je­tivo po­lí­tico de­ter­mi­nado. Lula se pôs a go­vernar sem con­flitos, sem luta de classes, ne­go­ci­ando per­ma­nen­te­mente e isso fun­ci­onou en­quanto a eco­nomia crescia. Quando ter­minou o ciclo das com­mo­di­ties e a eco­nomia co­meçou a cair, era pre­ciso agir no sen­tido das pro­me­tidas mu­danças es­tru­tu­rais.

No final das contas o mi­lagre lu­lista – e também dos pro­gres­sismos em geral – foi me­lhorar a si­tu­ação dos po­bres sem fazer re­formas es­tru­tu­rais. Por­tanto, quando ter­mina o ciclo dos altos preços das com­mo­di­ties não sobra ne­nhuma margem para me­lhorar a si­tu­ação dos po­bres, senão tocar a ri­queza. E esse passo o lu­lismo não se atreveu a dar no Brasil, e nem o kir­ch­ne­rismo na Ar­gen­tina. Entre ou­tras coisas, afe­taria di­re­ta­mente os in­te­resses do agro­ne­gócio e vale lem­brar que este setor do grande ca­pital in­te­grou o go­verno Dilma até o seu úl­timo mi­nuto – o que in­dica que existe uma aposta de apro­fundar o mo­delo ex­tra­ti­vista in­de­pen­den­te­mente do pre­si­dente que sente na ca­deira. Tudo sem tocar a ri­queza e os in­te­resses das elites, é claro.

Esta si­tu­ação gerou uma crise po­lí­tica na qual o PT no Brasil e o kir­ch­ne­rismo na Ar­gen­tina não foram ca­pazes de apontar para os se­tores po­pu­lares quem era seu ini­migo. Nesse sen­tido, se olharmos para meio sé­culo atrás, para a úl­tima carta de Ge­túlio Vargas, quando se sui­cidou, cla­ra­mente mi­rava um ini­migo. E Perón também. Eva Perón, idem. Todos viam um ini­migo: fosse o im­pe­ri­a­lismo ou a oli­gar­quia, havia um ini­migo. 

Ao não de­marcar um ini­migo, estes go­vernos passam a men­sagem de que estão re­nun­ci­ando à luta e nesse mo­mento, no mundo, não se pode viver sem lutar. As forças po­lí­ticas que não lutam contra um ini­migo ficam presas pelas forças po­lí­ticas que, essas sim, de­finem um ini­migo, como é a di­reita hoje.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que as lutas po­pu­lares têm em comum, hoje, no con­ti­nente? Qual a im­por­tância delas na cons­trução de um fu­turo que não seja o ne­o­li­be­ra­lismo total?
                                                                    
Raúl Zi­bechi: Na minha opi­nião, o que todas elas têm em comum é que lutam contra o ex­tra­ti­vismo e a he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro sobre suas vidas. 

Os Ma­pu­ches contra as em­presas que mandam na Pa­tagônia, os es­tu­dantes no Brasil contra o mo­delo ne­o­li­beral apli­cado na edu­cação, os in­dí­genas equa­to­ri­anos e bo­li­vi­anos e os cam­po­neses pa­ra­guaios contra o agro­ne­gócio e a mi­ne­ração; todos vão contra di­fe­rentes pi­lares do ex­tra­ti­vismo. As pró­prias AFPs (As­so­ci­ação de Fundos de Pensão), no Chile, alvos de grandes mo­bi­li­za­ções, são parte fun­da­mental do do­mínio do ca­pital fi­nan­ceiro na­quele país.

Esses mo­vi­mentos estão nos in­di­cando que para cons­truir um fu­turo co­le­tivo, pri­meiro temos de der­rubar este mo­delo ne­o­li­beral, fi­nan­ceiro e ex­tra­tivo. E não é pos­sível con­se­guir isso a partir de go­vernos, mas tal der­ru­bada tem de partir das ruas. 

Isso im­plica que os se­tores po­pu­lares, para porem fim ao mo­delo ne­o­li­beral, devem sair às ruas e co­locar em xeque a go­ver­na­bi­li­dade. Da mesma ma­neira como su­cedeu du­rante os ci­clos das pri­va­ti­za­ções, quando a go­ver­na­bi­li­dade ne­o­li­beral acabou e não foi pos­sível con­cluir o pro­cesso, que agora é re­to­mado.

Nem no Equador, nem na Bo­lívia, nem na Ar­gen­tina e nem na Ve­ne­zuela se abriu uma nova con­jun­tura. É pre­ciso co­locar em xeque a go­ver­na­bi­li­dade atual. E não pode ser feito de ma­neira gra­dual, com pres­sões in­ternas, dentro dos go­vernos, mas de forma com­ba­tiva nas ruas.

Vocês no Brasil sabem muito bem que as me­didas de Temer (e de todo o par­la­mento e im­prensa que o apoiam) não podem ser neu­tra­li­zadas do ga­bi­nete do go­verno. Se amanhã ga­nhar o Lula, as re­formas do Temer não serão to­cadas. Apenas as ruas podem anular os ajustes. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Po­demos afirmar que as des­ti­tui­ções de Lugo no Pa­ra­guai e Ze­laya em Hon­duras possam ter ser­vido como la­bo­ra­tório para a to­mada de in­fluência das di­reitas em países mais cen­trais como Brasil e Ar­gen­tina? 

Raúl Zi­bechi: É pro­vável que sim. É muito pro­vável que haja esta re­lação, ou seja, que os casos de Pa­ra­guai e Hon­duras – com Lugo e Ze­laya – te­nham sido la­bo­ra­tó­rios para des­ti­tuir go­vernos le­gal­mente, sem que hou­vesse a ne­ces­si­dade de co­locar tan­ques nas ruas, como eram os clás­sicos golpes de Es­tado no con­ti­nente. O que há em comum, por exemplo, com o caso do Brasil, é ativar e co­locar em fun­ci­o­na­mento um jogo de me­ca­nismos cons­ti­tu­ci­o­nais, le­gais – que com­ple­ta­mente fora de con­texto podem se tornar ile­gí­timos – para der­rubar ou di­re­ci­onar um pro­cesso po­lí­tico.

É im­pos­sível saber a res­posta com exa­tidão porque a bur­guesia in­ter­na­ci­onal não diz isso cla­ra­mente. Mas sim, é muito pro­vável que pos­samos pensar esses casos, de Pa­ra­guai e Hon­duras, como exi­tosos, uma vez que ou­tras bur­gue­sias to­maram o mesmo ca­minho.

Cor­reio da Ci­da­dania: Que tipo de setor das elites la­tino-ame­ri­canas se apro­priou do poder após essa vi­rada? Con­corda com o termo dado pelo eco­no­mista ar­gen­tino Jorge Bens­tein que o chama “lum­pem­bur­guesia”?

Raúl Zi­bechi: Para com­pre­ender a si­tu­ação é pre­ciso ter em conta que o mundo está vi­vendo uma mu­dança he­gemô­nica muito pro­funda. E tal mu­dança im­plica que as ve­lhas bur­gue­sias já não têm a força ou a ca­pa­ci­dade de ar­ti­cular a so­ci­e­dade como ti­veram em seu mo­mento.

Nesse pe­ríodo de tran­sição pa­rece que surgem se­tores opor­tu­nistas. Como dizia o his­to­ri­ador Fer­nand Braudel, que ca­rac­te­ri­zava a bur­guesia como “ave de ra­pina que apro­veita o mo­mento certo para cap­turar a presa”. Assim, temos per­so­na­gens muito cu­ri­osos, como os que in­te­gram o MBL, Kim Ka­ta­guiri e ou­tros que re­al­mente não vêm da velha bur­guesia como os po­lí­ticos do DEM, do PMDB ou os tu­canos. Ainda que em de­ter­mi­nado mo­mento eles di­a­lo­guem, é um erro dizer que vêm do mesmo lugar.

O mesmo ocorre no caso de Macri, que vem de uma bur­guesia que nasce no am­paro dos ne­gó­cios do Es­tado. É outro tipo de classe do­mi­nante e é pro­vável que isso leve a uma am­pli­ação das classes do­mi­nantes com ele­mentos que po­de­riam se ca­rac­te­rizar como “lum­pem­bur­guesia”, que crescem à sombra do Es­tado e li­gados à cor­rupção e a ne­gó­cios muito du­vi­dosos.

A es­querda também não é muito alheia a este pro­cesso, não é? Se olharmos para o caso da Ode­brecht e dos ir­mãos Ba­tista da JBS no Brasil, vemos uma ali­ança entre esta nova bur­guesia e o go­verno do PT. Uma bur­guesia opor­tu­nista – não é a clás­sica bur­guesia es­pe­ci­a­li­zada em um setor pro­du­tivo, mas uma bur­guesia de oca­sião. 

É pos­sível que Bens­tein tenha razão. Es­tamos em um pro­cesso de tran­sição também no ter­reno das classes do­mi­nantes.

Cor­reio da Ci­da­dania: No seu úl­timo texto pu­bli­cado pelo Cor­reio da Ci­da­dania, “O fim das so­ci­e­dades de­mo­crá­ticas na Amé­rica La­tina”, você elenca quatro pontos que des­ta­ca­riam o que chamou de erosão das bases cul­tu­rais e po­lí­ticas das de­mo­cra­cias. Entre esses pontos, des­taco o quarto – no qual afirma que “nós que que­remos der­rotar o ca­pi­ta­lismo de­vemos ter em mente que o sis­tema está se de­sin­te­grando e levar em conta que nosso ati­vismo fo­mentou a as­censão dos go­vernos di­rei­tistas”. De que ma­neira é pos­sível notar esta de­sin­te­gração ca­pi­ta­lista em um mo­mento em que muitos ana­listas apontam para uma con­so­li­dação do sis­tema?
                                                                    
Raúl Zi­bechi: Por um lado po­demos ver a crise de de­sin­te­gração do sis­tema através das crises das de­mo­cra­cias. Por exemplo, o triunfo de go­vernos como o de Trump. Ou mesmo o que está acon­te­cendo em Hon­duras. Ou o Brexit. Ou a re­ação es­pa­nhola a res­peito da in­de­pen­dência da Ca­ta­lunha. Todos podem ser sin­tomas dessa de­sin­te­gração.

Um sin­toma claro é o que Bens­tein aponta como a lum­pem­bur­guesia. Outro é que hoje os ter­ri­tó­rios po­pu­lares já não podem ser go­ver­nados sem o nar­co­trá­fico e os fe­mi­ni­cí­dios. É pre­ciso en­tender tais fa­tores como uma nova forma de go­vernar, de con­trole so­cial, no sen­tido do que Fou­cault co­lo­cava do con­trole a céu aberto sobre os se­tores po­pu­lares em um mo­mento no qual o velho pa­nóp­tico já foi des­mon­tado pelos de baixo. Pa­rece-me que aqui há um ter­reno de aná­lise muito im­por­tante porque a crise do pa­nóp­tico, a crise do for­dismo e a do Es­tado-nação têm muita re­lação com este pe­ríodo de tran­si­ções caó­ticas que es­tamos vi­vendo.

Acre­dito que para com­pre­ender a de­sin­te­gração das so­ci­e­dades é pre­ciso olhar para a si­tu­ação com­pa­rada com o que se vivia nos nossos países há cin­quenta anos. Nos anos 60, uma fa­vela era com­ple­ta­mente di­fe­rente do que é uma fa­vela hoje. As pe­ri­fe­rias ur­banas da Amé­rica La­tina eram com­ple­ta­mente di­fe­rentes.

Hoje, grande parte da po­pu­lação sob o mo­delo fi­nan­ceiro-ex­tra­tivo não tem di­reito à saúde, mo­radia, edu­cação e sim­ples­mente não tem di­reito a nada. Tem um ou outro be­ne­fício. O Bolsa Fa­mília, por exemplo, é um be­ne­fício, não é um di­reito. E a di­fe­rença de ser um ci­dadão com di­reitos ou um ex­cluído com be­ne­fí­cios marca, a partir dos se­tores po­pu­lares, a di­fe­rença entre esses dois pe­ríodos: um de certa es­ta­bi­li­dade no sis­tema e outro de de­sin­te­gração sis­tê­mica, o que es­tamos vi­vendo agora.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como vê a questão do nar­co­trá­fico, do ra­cismo e do fe­mi­ni­cídio como con­trole so­cial, em es­pe­cial no Brasil, um país que atinge anu­al­mente a cifra de 60 mil ho­mi­cí­dios por ano?

Raúl Zi­bechi: O im­por­tante é ver que tanto o pa­nóp­tico quanto o for­dismo foram des­mon­tados pelos tra­ba­lha­dores e pelos se­tores po­pu­lares. Ou seja, as formas de con­trole an­te­ri­ores foram der­ru­badas por baixo. E por isso eu digo que nós jo­gamos um papel fun­da­mental na crise atual. Pois o sis­tema, em seu mo­vi­mento na­tural, vai de­sen­vol­vendo novas formas de con­trole.

Di­fe­ren­te­mente de ou­tros ana­listas, não acre­dito que o pa­nóp­tico tenha caído por ques­tões tec­no­ló­gicas, muito menos o for­dismo. Foi a luta dos opri­midos que os neu­tra­li­zaram. Assim, hoje, no caso do for­dismo, em vez das li­nhas de pro­dução tra­di­ci­o­nais, temos au­to­ma­ti­zação e robôs nas fá­bricas de au­to­mó­veis – e um menor nú­mero de tra­ba­lha­dores nesse setor da eco­nomia.

E na re­or­ga­ni­zação do con­trole, apa­recem as ONGs fa­zendo um papel cla­ra­mente de­sig­nado pelo grande ca­pital de con­trolar as dis­si­dên­cias, uma vez que o pa­nóp­tico fra­cassa. 

Como “pa­nóp­tico”, me re­firo ao tempo em que fa­mília, igreja, es­cola, quartel e fá­brica ti­nham um papel cen­tral e eficaz no con­trole so­cial. Eram es­paços de con­tenção e dis­ci­plina muito rí­gidos que hoje vivem de­ca­dência e buscam rein­venção. Ou seja, é um mo­mento em que o poder busca uma gama mais ampla de pos­si­bi­li­dades de exercer o con­trole sobre a po­pu­lação. 

As ONGs são uma forma de con­trolar dis­si­dên­cias, outra é o en­di­vi­da­mento que fa­lava De­leuze e que hoje no Brasil tem um papel muito im­por­tante – o en­di­vi­da­mento é uma forma de dis­ci­plinar e con­trolar. Os fe­mi­ni­cí­dios, o nar­co­trá­fico e a Po­lícia Mi­litar, é claro, também são formas de con­trole so­cial, pelo medo e pela vi­o­lência. E as classes do­mi­nantes estão in­ves­tindo em pes­quisas sobre como am­pliar esse leque de tá­ticas de con­trole so­cial através da in­te­li­gência ar­ti­fi­cial, do todo o rol ci­ber­né­tico e das novas tec­no­lo­gias – além, é claro, de apagar ex­pe­ri­ên­cias li­ber­ta­doras como a de Paulo Freire da me­mória das pes­soas, como vemos nas in­ten­ções do mo­vi­mento Es­cola Sem Par­tido.

Re­su­mindo, a bur­guesia está bus­cando em muitos sen­tidos novas formas de con­trole porque os par­tidos de es­querda e os sin­di­catos que também fun­ci­o­naram em muitos mo­mentos como formas de con­trole, no sen­tido de li­mitar a luta po­pular aos seus pro­gramas e im­pedir o cres­ci­mento de ra­di­ca­lismos. Nesse sen­tido, o PT foi muito im­por­tante no Brasil. Mas quando esses par­tidos e sin­di­catos co­meçam a fra­cassar, apa­rece uma mul­ti­pli­ci­dade de formas de con­trole para evitar que os se­tores po­pu­lares se au­to­no­mizem em re­lação ao ca­pital e ao Es­tado.

Cor­reio da Ci­da­dania: E pen­sando na crise que en­frentam os par­tidos de es­querda e sin­di­catos dentro desse con­texto, como entra a questão das ONGs?

Raúl Zi­bechi: Há um mo­delo de ONG que é o do Ge­orge Soros e vem para tomar para si as mesmas pa­la­vras de ordem da es­querda e dos mo­vi­mentos po­pu­lares, bem como muitas das suas formas de ação e or­ga­ni­zação para, assim, neu­tra­lizá-los. As ONGs que fun­ci­onam dessa forma são como um vírus in­tro­du­zido nas lutas po­pu­lares.

Isto ocorre porque cons­ti­tuem or­ga­ni­za­ções que apa­ren­te­mente são para a luta mas que buscam, no final das contas, neu­tra­lizar a luta. Isto gera enorme con­fusão. Há um sábio que disse que é mais fácil sair do erro do que da con­fusão. E a bur­guesia através dessas ONGs e de mo­vi­mentos con­fusos está in­tro­du­zindo a con­fusão no campo po­pular.

No Brasil, parte da con­fusão pode ser ilus­trada pela or­ga­ni­zação “Fora do Eixo”, de Pablo Ca­pilé. Não é um mo­vi­mento po­pular, nem so­cial, nem po­lí­tico. É uma cri­ação ar­ti­fi­cial das elites, nesse caso pro­gres­sistas, mas no mesmo sen­tido que fazem or­ga­ni­za­ções se­me­lhantes pela di­reita, como as do mé­todo Soros, para der­rubar a luta po­pular, quando o sin­di­cato e o par­tido não con­se­guem mais or­ga­nizar os jo­vens que estão fora dessas or­ga­ni­za­ções – a mai­oria deles hoje.

Na época de Lula, há qua­renta anos, os jo­vens eram ope­rá­rios e se or­ga­ni­zavam em sin­di­catos, em co­mu­ni­dades ecle­siais de base, no PT e no MST. Hoje em dia, há um grande nú­mero de jo­vens que estão fora de qual­quer or­ga­ni­zação e há uma dis­puta no sen­tido de poder or­ga­nizá-los. E nesse sen­tido, o Fora do Eixo e o MBL cum­prem o mesmo papel – cada um, ob­vi­a­mente, para o lado que de­fende e para onde e quem, desde a elite, foram con­ce­bidos.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível um for­ta­le­ci­mento das re­sis­tên­cias que se opo­nham a estes avanços do ca­pital para 2018?

Raúl Zi­bechi: Sem dú­vidas há con­di­ções para um for­ta­le­ci­mento das re­sis­tên­cias porque a ofen­siva das di­reitas é muito dura.

O caso do Equador, por exemplo, pode se re­petir em ou­tros países. Na Ar­gen­tina há um au­mento das lutas como vimos nestes úl­timos meses e na mai­oria dos países temos uma si­tu­ação de tensão muito forte porque os se­tores po­pu­lares re­chaçam re­formas pro­postas pela di­reita.

Mas aqui surge um pro­blema. No seio dessas lutas há duas ten­dên­cias, na Ar­gen­tina e no Brasil so­bre­tudo. Há aqueles que lutam para der­rubar as re­formas da di­reita e o mo­delo ex­tra­ti­vista e há aqueles que lutam para que Lula e Cris­tina Kir­chner re­tornem aos go­vernos dos seus países.

Ob­servei que no Brasil a CUT tem freado lutas porque seu ob­je­tivo não é der­rubar Temer agora, mas sangrá-lo para que Lula possa ga­nhar as elei­ções de 2018. Sig­ni­fica que, mesmo em con­di­ções de for­ta­le­ci­mento das lutas po­pu­lares, também há pro­blemas in­ternos dentro do campo po­pular que podem des­viar a luta para o ter­reno elei­toral no­va­mente.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como avalia a si­tu­ação na re­gião amazô­nica, onde vemos a mi­ne­ração e se­tores hi­dre­lé­tricos em ver­da­deira ofen­siva sobre ter­ri­tó­rios in­dí­genas – co­bertos pelas pre­ten­sões de um dos eixos do plano IIRSA?

Raul Zi­bechi: Os povos in­dí­genas são no­va­mente a van­guarda da luta contra o mo­delo ex­tra­ti­vista. Não apenas os in­dí­genas, como também todos os povos ori­gi­ná­rios: ri­bei­ri­nhos, pes­ca­dores, qui­lom­bolas – todos os povos ori­gi­ná­rios estão di­re­ta­mente in­te­res­sados na der­ru­bada do mo­delo ne­o­li­beral. E neste pe­ríodo co­meça a surgir um novo ator po­lí­tico que são os povos afro­des­cen­dentes, os ne­gros. E a luta negra, nos qui­lombos ru­rais e pe­ri­fe­rias ur­banas, está fa­zendo um papel muito im­por­tante nas re­sis­tên­cias.

Acre­dito que o ex­tra­ti­vismo só possa ser der­ro­tado lo­cal­mente. Por exemplo, a luta contra a hi­dre­lé­trica de Belo Monte, tem que ser em Belo Monte. Não é pos­sível lutar contra o mo­delo ex­tra­ti­vista no Pa­lácio do Pla­nalto, mas em cada um dos lu­gares onde tal mo­delo se de­sen­volve.

Como foi a luta contra o for­dismo: nas fá­bricas. Acre­dito que esses atores, tais su­jeitos so­ciais e po­lí­ticos são os que estão ques­ti­o­nando a fundo o mo­delo ex­tra­ti­vista, as obras da IIRSA, todo o pro­jeto de hi­dre­lé­tricas, de mi­ne­ração e de soja, pois são os que estão mais afe­tados di­re­ta­mente por este mo­delo.

Também é im­por­tante olhar para os mo­vi­mentos das pe­ri­fe­rias ur­banas e das po­pu­la­ções das fa­velas, que têm um in­te­resse ob­je­tivo de lutar junto com esses mo­vi­mentos do campo. Não de lutar na mesma or­ga­ni­zação, mas de con­fluir no mesmo ob­je­tivo. Por exemplo, o Ocupa Alemão do Morro do Alemão no Rio de Ja­neiro lu­tando contra a vi­o­lência po­li­cial, e os Mun­du­ruku no rio Ta­pajós contra os pro­jetos hi­dre­lé­tricos e mi­ne­ra­dores, no final das contas estão lu­tando contra o mesmo pro­jeto, querem der­rubar o mesmo mo­delo. Suas lutas vão na mesma di­reção na­tu­ral­mente.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que está co­lo­cado para a Amé­rica do Sul no pró­ximo pe­ríodo?

Raul Zi­bechi: Di­fe­ren­te­mente do que opinam os ana­listas que acre­ditam que o prin­cipal é tirar a di­reita dos go­vernos, eu acre­dito que o fun­da­mental é der­rubar o mo­delo ex­tra­ti­vista. Porque este mo­delo é o que está cau­sando danos aos se­tores po­pu­lares da ci­dade e do campo. É o que está fa­ci­li­tando a volta das di­reitas aos go­vernos e sua con­ti­nui­dade. 

Na minha opi­nião, a ta­refa prin­cipal do pró­ximo pe­ríodo é or­ga­nizar as forças para der­rotar o mo­delo ex­tra­ti­vista da mesma ma­neira que se lutou contra o mo­delo das pri­va­ti­za­ções.

Ima­gino os pró­ximos anos com os povos lu­tando for­te­mente em cada um dos lu­gares onde este mo­delo se ma­ni­festa. Contra a fer­rovia de Ca­rajás, contra as 300 hi­dre­lé­tricas que querem cons­truir na Amazônia, contra a soja e toda sorte de trans­gê­nicos, contra a vi­o­lência po­li­cial nas ci­dades e por aí vai. Esta é a luta prin­cipal que, creio, nos ocu­pará nos pró­ximos anos.


(*)Raphael Sanz é jor­na­lista e editor-ad­junto do Cor­reio da Ci­da­dania.

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(Com o Correio da Cidadania)

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