Exploração sem limites em pleno século XXI...

                                               

Dívidas impagáveis, ameaças veladas, água dividida com animais, jornadas extenuantes sem descanso, moradias insalubres, falta de equipamentos de proteção e de kits de primeiros socorros.

Os relatos de trabalhadores resgatados no país reúnem vários elementos que mostram como se configura o trabalho análogo ao de escravos nos dias de hoje.

A reportagem é de Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis, publicada por G1, 09-01-2018.

Um levantamento exclusivo feito pelo G1 analisou 315 relatórios de fiscalização obtidos via Lei de Acesso à Informação. Foram analisadas 33.475 páginas que contêm a descrição do local e da situação verificada in loco pelos grupos de fiscalização, bem como as infrações aplicadas, fotos, depoimentos dos trabalhadores e documentos diversos, como recibos e guias trabalhistas.

Das 315 fiscalizações analisadas (de janeiro de 2016 a agosto de 2017), 117 acabaram com ao menos um trabalhador resgatado.

Fazenda em Itupiranga (PA) – trabalhador de 36 anos – resgatado em novembro de 2016
“Eu fiquei sabendo que precisavam de trabalhadores na fazenda e fui para lá com meu irmão. Fomos de carona. Chegamos à fazenda e procuramos o gerente. Fomos contratados para fazer todo tipo de serviço, como roçar pasto, arrumar cerca, aplicar veneno. 

O gerente disse que pagaria R$ 800 por mês livre, mas desconta do salário as coisas que eu peço para trazer, como sabão, pasta de dente, fumo, isqueiro, botina. Nunca vi a nota fiscal desses produtos. Acho caro o valor dos produtos que são descontados. É o gerente quem paga o salário. Eu recebo todo dia 2 do mês, em dinheiro. Assino um recibo de salário, mas não fico com nenhuma via.

Moro no barracão que serve de alojamento para os trabalhadores. O quarto tem paredes de tábua e uma mesa de ferro que a gente usa para guardar as roupas. Os ratos sobem no alojamento pelas frestas das tábuas. São muitos. Eles andam por tudo, roem os alimentos, passam por cima dos móveis.

No quarto tem somente a mesa de ferro e três balandeiras, as redes em que cada um de nós dorme. Não tem luz no quarto. A minha balandeira fui eu mesmo que comprei. Paguei R$ 70. O lençol e a toalha de banho eu comprei antes de vir para cá. A fazenda não tem cama nem colchão pra gente. A gente usa a própria roupa para trabalhar e aplicar veneno. 

Não tem máscara ou roupa própria para isso. Não tem óculos de proteção. A água que a gente bebe vem de uma grota e tem gosto de ferrugem. Quando chove, a água fica escura e barrenta. Não tem lugar para fazer as refeições no local de trabalho. Lá também não tem banheiro e, quando estou trabalhando, faço minhas necessidades no mato. Por aqui, também não tem kit de primeiros socorros. Se alguém se machucar tem que ir para a rua.”

Fazenda em Rio Brilhante (MS) – trabalhador de 28 anos – resgatado em abril de 2016
“Comecei a trabalhar na fazenda no corte de cana para muda de plantio. Fui trazido para a fazenda por um senhor cabeçante [aliciador de mão de obra] e vizinho. Vim em um ônibus, da reserva indígena onde eu morava junto com outros 44 da mesma aldeia. Faço o trabalho de forma manual, cortando cana com facão, e fazendo cobrição com enxada. No serviço, eu uso roupas e calçados que eu mesmo comprei. 

Começo o trabalho por volta das 6h e vou até o meio-dia, quando paro para almoçar. Recomeço o trabalho por volta das 13h e termino por volta das 16h. Trabalho de segunda a sábado e não marco os horários em ficha, cartão ou livro. Faço minhas necessidades fisiológicas no meio do canavial, porque não tem banheiro. Almoço no local de trabalho, sentado no chão, a céu aberto. Acertei com o senhor que receberia o dinheiro ao final do serviço. Não tive adiantamento. Tenho carteira de trabalho, mas o serviço não está registrado. Não fiz exame antes de começar o trabalho. Desde que cheguei, estou num galpão, dormindo no saco de adubo improvisado como rede. Eu mesmo trouxe minhas próprias cobertas.

Lá no alojamento, temos apenas um banheiro para 45 trabalhadores. Quando fica ocupado por muito tempo, eu uso a vegetação local para mijar e defecar. Tomo banho com a água do poço, perto do alojamento, com a ajuda de um balde. Também uso a água do poço para beber e lavar roupa. O poço fica aberto o dia todo, porque a tampa de concreto é muito pesada.

A qualidade da comida não é boa. O almoço e o jantar vêm em marmitas. Às vezes eu encontro pequenos insetos na comida. Sento no chão ou improviso algo como assento – tocos, telhas, garrafas térmicas – para comer. A refeição do café não é fornecida. Os próprios trabalhadores fazem o café e um bolinho feito de farinha, açúcar e óleo, em fogareiros improvisados, feitos de fogões e ferro velho encontrados no local. O pó de café, o açúcar e a farinha são fornecidos pelo empreiteiro responsável por plantar a cana.”

Construtora em Poços de Caldas (MG) – trabalhador de 52 anos – resgatado em setembro de 2016
“Eu cheguei no alojamento e não tinha cama. Só um colchão pra dormir sobre o chão. Eu bebia água diretamente da torneira, que vinha direto da caixa d’água. Tive diarreia e infecção urinária. Não recebi qualquer pagamento. Também não recebi nenhum item de higiene pessoal. Não tinha papel higiênico nem creme dental. 

Não havia mantimentos no alojamento, mas eles forneciam pra gente a alimentação. Fui tratado com muita falta de respeito, não me senti tratado como um ser humano. O senhor chegou a fazer uma reunião com os empregados e disse que não ia pagar ninguém porque as contas dele estavam bloqueadas. Ele falou que com ele os problemas são resolvidos na bala.”

Pousada em Fortaleza (CE) – trabalhador de 20 anos – resgatado em fevereiro de 2016
“Um conhecido me apresentou a dona de uma imobiliária em Manaus. Comecei a trabalhar em abril de 2015, limpando a empresa, passando pano, servindo café e realizando pequenos serviços. Em junho, fui morar na casa a convite dela. A partir daí, acordava em torno das 6h para passar as roupas dos meninos, os filhos dela, e levá-los para o colégio. Depois disso, ia para a imobiliária, onde abria a empresa, limpava e passava o pano, além de ligar o ar e preparar o café. 

Quando fui morar com a patroa, ela dispensou a empregada doméstica. Eu fazia todo o trabalho da casa. Em outubro, ela me convidou para vir a Fortaleza trabalhar na pousada que eles iam abrir para trabalhar como recepcionista. Falou que eu ia ter salário e folga nos fins de semana. Ela me prometeu pagar um salário mínimo quando ainda trabalhava em Manaus, mas nunca recebi nenhum valor em Manaus nem em Fortaleza.

Desde que cheguei, sempre trabalhei fazendo o café, lanches, lavando roupas, na limpeza da pousada e como recepcionista, mas nunca recebi salário. Começo a trabalhar às 5h, todos os dias, no preparo do café da manhã dos hóspedes, e só termino minha jornada por volta das 22h.

Quando a patroa chegou de Manaus, eu arrumei o quarto para ela e para o marido e outro para os filhos. Fui dormir na rede no terraço da pousada. Fiquei dormindo no terraço por bastante tempo e, às vezes, quando não sobra quarto da pousada, eu ainda durmo lá. Já reclamei duas vezes pra ela, pra mãe dela e pro marido me pagarem o salário. Ela e a mãe também não me deixavam sair da pousada. Duas vezes, a mãe da patroa fechou o portão da pousada para me impedir de sair para a rua.”

Sítio em Minaçu (GO) – trabalhador de 49 anos – resgatado em maio de 2016
“Nunca fui para a escola. Fui contratado em Cotegipe, na Bahia, para trabalhar como caseiro. Arrumei todas as minhas coisas com a promessa de que seria levado de volta pra Cotegipe após alguns dias em uma fazenda em Minaçu, em Goiás.

Estou há meses cuidando do gado. O senhor não cumpriu a promessa de me levar para casa. Fui enganado. Combinamos o pagamento de um salário mínimo por mês. Desde que saí da minha cidade, nunca recebi salário. Só recebi R$ 150. Também recebo arroz, feijão, farinha de mandioca, carne, óleo, sabão de coco, papel higiênico, café e açúcar. A cada 15 dias, ele traz cachaça e pacote de fumo. O senhor me autoriza a comer os ovos das galinhas e a beber o leite das vacas.

Uma vez matei uma galinha para comer, mas não gosto de fazer isso para não ficar sem ovo. A carne que ele trouxe acabou e estou há uma semana sem comer. Só tenho arroz, feijão e farinha. Minha casa não tem armário. Deixo minhas coisas em uma bolsa de viagem ou penduradas em pregos nas paredes. Não tem reboco e o piso é de chão batido. Uma das portas está quebrada. Não uso máquina para roçar.

Uso as minhas roupas para aplicar veneno e não recebi treinamento. Lavo as minhas roupas no mesmo lugar que uso para tomar banho, que é um córrego a céu aberto. Semana passada, achei uma jararaca lá. Também pego água lá para beber, lavar louça e cozinhar. A minha casa não tem banheiro, uso o mato. Não tem também água nem energia elétrica.

Todos os meus documentos foram entregues quando vim da Bahia. Estou pedindo para que ele me devolva os documentos tem meses. Tenho vontade de ir embora. As condições de trabalho e de vida são ruins. Já pedi várias vezes para ir embora, mas ele promete me levar de volta e nunca cumpre. Só não fui embora porque estou sem meus documentos e não tenho dinheiro. Quero voltar para casa.”

Fazenda em Arapoema (TO) – trabalhador de 16 anos – resgatado em março de 2017
“Trabalho desde os 13, 14 anos. Faço serviço de cerca. Quando o trabalho exige muita força, me ajudam. O fazendeiro nunca me pediu para tirar ou trazer carteira de trabalho. Durmo num quartinho que era usado para guardar tralha, no curral, junto com uma mulher e o bebê. O bebê ficou doente e precisou ser levado para a cidade. Apareceram alguns caroços e teve febre.

O patrão não fornece nenhum equipamento de proteção para o trabalho. Comprei botina, luva, outras coisas.

Sempre precisamos ir para o mato para fazer as necessidades. Aqui na área do curral aparecem aranhas, cobras, morcegos. E a gente almoça aqui mesmo. Não tem mesas ou cadeiras. Na minha vida, só trabalhei para ele. Costumo sentir câimbras e dores nas costas e braços. Me sinto muito mal no trabalho.”

Fazenda em São Félix do Xingu (PA) – trabalhador de 45 anos – resgatado em março de 2016
“Perdi todos os meus documentos, mas sou natural de Mauriti, no Ceará. Estava andando pela rua em São Félix do Xingu e fui abordado por um senhor que me ofereceu emprego. Fui contratado na mesma turma dos demais trabalhadores há dois meses. Chegamos à noite na fazenda e tivemos que dormir num barracão em péssimas condições. No dia seguinte, com o material levado pelo gato [aliciador de mão de obra], um plástico novo, construímos dois barracões e uma estrutura para servir de cozinha.

No início, a gente bebia e usava a água de um córrego. Depois, cavamos um poço, uma espécie de ‘cisternazinha’. A água tinha cor amarelada e gosto ruim, de mijo de vaca.

As vacas faziam as necessidades na selva mesmo. No começo, deram para a gente arroz, feijão e uma novilha. Essa novilha foi fritada e durou uma semana. Depois, deram só arroz e feijão. Comecei fazendo atividade de roça e depois fui para a motosserra. Aprendi a usar a motosserra sem nenhum tipo de treinamento. Na região, a gente via muita cobra e não havia assistência alguma. Aos poucos, os trabalhadores foram embora por não receberem o salário prometido.”

(Com IHU)

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