''As Igrejas se tornaram grandes escolas de ateísmo". Entrevista com Massimo Cacciari

                                                              
Ele ouviu a palavra do Evangelho fora do templo: “As Igrejas se tornaram grandes escolas de ateísmo. Na grande parte delas, a força paradoxal do verbo de Cristo é transformada em um discurso catequético e repetitivo, um pequeno fetiche consolatório e tranquilizador, um ‘idolozinho’: é o oposto daquilo que Jesus ensinava ao perguntar aos seus discípulos: ‘Quem vocês creem que eu sou?’.”

Massimo Cacciari ainda era estudante do segundo ano do liceu quando, entre o Zaratustra de Nietzsche e as primeiras leituras de Hegel, abriu as páginas do Novo Testamento: “Foi entusiasmante sentir a extraordinariedade daquele texto, a beleza de uma história que leva a ir à procura, sem certezas, arriscando. Em 90%, os padres são incapazes de apresentar o poder desse relato. As suas homilias, muitas vezes, são lições de antirreligião”.

A reportagem é de Nicola Marenzi, publicada no sítio L’HuffingtonPost.it, 25-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nos anos 1960 e 1970, enquanto estavam na moda os cabelos compridos, Marx, as calças boca de sino, Marcuse, o eros e a civilização, Kerouac, a China e Janis Joplin, Cacciari lia os textos da teologia cristã: “Nas revistas da esquerda não orgânicas ao Partido Comunista – Quaderni Rossi, Contropiano – discutíamos a Santa Igreja Romana junto com Giorgio Agamben, Mario Tronti, Giacomo Marramao. Tínhamos ideias diferentes, mas compartilhávamos as mesmas leituras: tudo bastante herético”.

O Natal das árvores de PVC, das compras online e dos centros comerciais abertos o dia todo; o Natal da neve cintilante colada nas vitrines, das barbas brancas, das renas e dos trenós, não o escandaliza: “Basta saber que o nascimento de Cristo não tem nada a ver com aquilo que vemos ao nosso redor. O Natal tornou-se uma festa para crianças e adultos um pouco tolos. Não é preciso elevar altos lamentos contra o consumismo. É preciso apenas refletir, meditando com sobriedade e desencanto”.

No seu livro Generare Dio [Gerar Deus] (Ed. Mulino), ele mostra – como leigo – que, no mistério da encarnação de Deus, existe um personagem que sempre tivemos debaixo dos olhos, mas ainda não fomos capazes de ver na sua inteireza: Maria.

Eis a entrevista.
                                                           
Por que, professor?

Maria foi quase completamente ignorada também pelos filósofos que interpretaram a Europa e a Cristandade, como Hegel e Schelling. O discurso privilegiou a relação do pai com o filho. Maria foi reduzida a uma figura de humildade banal, um ventre submisso e obediente que se deixou fecundar pelo Espírito Santo sem qualquer perturbação.

E ao contrário?

Quando o Arcanjo Gabriel lhe anuncia que ela conceberá e dará à luz um filho, e que ele será chamado de Filho do Altíssimo, Maria tem medo. Retrai-se, duvida, é atacada pela angústia, medita. O seu sim não é de todo óbvio. No momento em que ela o pronuncia, é um sim livre e poderoso, fundado sobre a escuta da palavra. Porque Maria chega a querer a vontade divina.

Ninguém tinha se dado conta disso antes?

No pensamento, apenas alguns autores – penso em Baltasar – refletiram sobre a figura de Maria. É na pintura – na grande pintura ocidental – que Maria se eleva ao papel de protagonista absoluta. Estamos diante de um daqueles casos em que a expressão figurativa foi muito mais profunda do que a linguagem.

O que ela consegue mostrar?

Que, se tirarmos do nascimento de Cristo a escolha dessa mulher que acolhe no seu ventre o filho de Deus e o seu Logos, a encarnação se torna uma comédia. Maria é livre. Ou, melhor, é mais: o seu livre doar-se à escuta, na realidade, é uma hiperliberdade.

Por que hiper?

Quando – no Jardim do Éden – Adão come o fruto da árvore do conhecimento, ele obedece ao próprio desejo. A sua liberdade é a liberdade de satisfazer os próprios impulsos. Maria, em vez disso, reflete, interroga-se, sofre. Depois, faz a vontade do outro. A sua liberdade é a de fazer um dom de si mesma. É como o seu filho: faz a vontade do pai. E qual é a maior liberdade: aquela que acorrenta você a si mesmo ou aquela que liberta você do amor próprio?

Mas a liberdade pode ser desconectada daquilo que se deseja?

Mas por que não se deveria desejar doar a si mesmo aos outros? Por que esse não pode ser o objeto do desejo, em vez do de satisfazer as próprias pulsões?

Podemos conseguir isso?

Jesus, Maria, Francisco nos deram exemplos da liberdade entendida como dom. É além do humano segui-los? Pode ser. E também pode ser que, justamente aí, se encontrem a radicalidade da mensagem cristã e o super-homem de que falava o anticristão Nietzsche: no impossível.

Mas, se é impossível, por que tentar?

Porque o impossível não é uma fantasia, um jogo inútil e vão. O impossível é a extrema medida do possível. E, se você não orienta a sua vida nessa direção, você permanecerá prisioneiro do seu tempo. Essa é a mensagem de Jesus: para ser livre, tenha como medida a minha impossibilidade.

Se não podemos ser como ele, por que Cristo se fez homem?

Porque é necessário ter como medida algo que nos ultrapassa para conseguir nos impulsionar além. Cristo não pregava nos templos: pregava fora, nas ruas. Os seus discípulos diziam: “Ele está fora”. No sentido: “Está fora de si, é louco”. Porém, Jesus marcou um antes e um depois na história do homem, criou o mundo cultural e antropológico em que vivemos. Existe algo mais realista do que isso? Sem essa impossibilidade, nada nos impulsionaria a sair de nós mesmos, a reorientar de maneira diferente as nossas vidas.

Por que deveríamos fazer isso?

Para libertar o nosso tempo das suas misérias. Quanto mais a nossa época nos encerra novamente dentro dela, mais são necessárias as grandes ideias, pensamentos-limite, palavras últimas. São as únicas coisas que podem nos erradicar do tempo em que vivemos.

Como você o definiria?

Obsceno, no sentido literal do termo: um momento em que tudo deve ser posto em cena: os nossos pensamentos, as nossas fotografias, os nossos segredos. Nada deve estar em uma zona escura. Em vez disso, é justamente da escuridão que provém a luz que ilumina e revela. Pense na pintura da Europa, a terra do pôr-do-sol: o que ela representaria sem o jogo da sombra?

Está tudo realmente tão exposto?

Ao contrário. A ideologia da transparência é apenas uma ideologia. Nunca como hoje as potências que governam o mundo foram tão escondidas. Para além da aparência, a nossa época é a do oculto, dos poderes anônimos, daquilo que não se vê. Enquanto, no caso de Maria, a luz divina se cobre de sombra para se manifestar na realidade, no nosso tempo a escuridão se esconde atrás da luminosidade. Lúcifer está nos infernos, mas finge ser portador de claridade. A nossa época é atravessada pelo espírito do anti-Cristo. Houve momentos em que ele se manifestou na sua forma pura. Hoje, no entanto, ele circula mascarado.

A política também teria algo a aprender com Maria?

Maria é uma figura da liberdade, não é a santinha que os padres contam. A sua humilitas é meditação e escuta. Se ainda lessem, os políticos também poderiam aprender com ela. Se não por outra razão, para estarem mais conscientes da história em que se situam. O drama, porém, é que houve uma completa divergência entre o saber e o poder.

Quanto às figuras religiosas, os cristãos não poderiam ajudá-los?

Os cristãos são os primeiros a se esquecer do Natal, deixando de pregar a paradoxalidade do verbo.

O papa também?

O discurso é mais complexo. Francisco se inscreve na tradição inaciana, em que a ética da fé se conjuga com a vontade de poder, e a absoluta direção moral e ética se combina com uma grande capacidade de capturar o mundo nas próprias redes.

Por que nem sequer as feministas refletiram sobre Maria?

Porque elas também – embora protagonistas da última verdadeira revolução das últimas décadas – permaneceram vítimas da leitura machista da encarnação. Elas olharam para Maria como uma figura servil, totalmente obscurecida pela relação entre pai e filho, não conseguindo entrever o que existe além.

(Com  UHU)

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