FARC decidem futuro em primeira conferência pública em mais de meio século

                                                           
Carmen Rivera 

 Especial para Opera Mundi | Llanos de Yarí (Colômbia) 

Organização guerrilheira se prepara para a transição à vida civil e participação no cenário eleitoral em encontro com presença da imprensa

      
Integrantes do Estado Maior e 200 delegados das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP) estarão dedicados até o próximo dia 23 aos debates de sua X Conferência Guerrilheira, a primeira não clandestina e com ampla cobertura dos meios de comunicação.

Mais de 400 veículos de imprensa do mundo todo estão dando cobertura ao evento, que começou no dia 17 e deve referendar os Acordos de Paz de Havana. O documento de quase 300 páginas, construído durante quatro anos de negociações para o fim do conflito armado de mais de meio século, será assinado no próximo dia 26, em Cartagena, no caribe colombiano, pelo comandante-em-chefe das FARC, Timoleón Jiménez, e pelo presidente Juan Manuel Santos.
                                                             
Para sua última conferência como organização clandestina, as FARC montaram um pequeno povoado no meio da savana colombiana, em Llanos de Yarí, um território em litígio entre os estados de Caquetá e Meta, que já foi refúgio de seus principais líderes em 52 anos de existência da organização revolucionária, inclusive de Manuel Marulanda (foto), seu fundador.

Esse imenso descampado, onde se chega por estradas de terra em difíceis condições e somente em veículo 4x4, está a cinco horas de distância da cidade de San Vicente de Cauguan, em Caquetá. Mas nem mesmo a logística complicada impediu o exército revolucionário de montar uma minicidade de cabanas e barracas para receber seus delegados, jornalistas e convidados. 

O espaço ganhou restaurantes, dormitórios coletivos, banheiros e até lavanderia para os que não quiseram aderir aos acampamentos guerrilheiros da área, onde os profissionais de imprensa recebem kit de lençóis e manta novos e limpos e estão totalmente autorizados a fazer imagens e entrevistas. Os jornalistas pagam o justo por suas refeições, serviços extras e internet instável.
                                                                
Os guerrilheiros das FARC, que até há poucas semanas estavam mobilizados para o conflito armado contra o Estado colombiano, estão dedicados a dar a melhor atenção aos participantes do evento. Na cabana de primeiros socorros, Mike é quem faz o atendimento dentário num consultório improvisado. Quando subi os quatro irregulares degraus de madeira que levam à porta da cabana suspensa, desejava apenas que um dentista revisasse um dente que havia quebrado no dia que cheguei ao acampamento, véspera do início dos trabalhos. Confesso que não me havia dado conta que o rapaz humilde e tímido que me recepcionou e me conduziu à maca já era o próprio “dentista”.

Mike vestia calças jeans, camiseta polo azul de manga longa com listras brancas. Sem jaleco, vestiu as luvas de silicone e pôs o protetor de boca e nariz. Fui orientada a tirar as botas pantaneiras, as únicas adequadas para tanta lama e terreno irregular e pedregoso. Já deitada numa maca, recebi um guardanapo de papel. Mike avisou-me que a cuspidora era um balde ao lado da maca. E haja pontaria para não acertar o pé do dentista, que usava sandálias de borracha.

Após examinar-me e usando termos técnicos, Mike observou que haviam feito algo equivocado no último tratamento do molar em questão. Sugeriu uma intervenção para substituir a restauração e eu o autorizei. Durante o procedimento, ofereceu-se para refazer também a restauração do dente contiguo, muito antiga e ainda de amálgama. “Isso já não se usa mais. Em meia hora a gente deixa tudo novo e você fica tranquila”.

Profissional de mão leve, Mike me explicava cada etapa da intervenção, para a qual usava instrumentos idênticos aos que se vêm em qualquer consultório particular. Utilizou material descartável e me ofereceu um espelho para conferir o resultado. Aliviada com o tratamento rápido e eficiente, investigo o meu dentista.

Mike, há 16 anos na guerrilha, nunca foi à universidade. “Aprendi odontologia lendo livros, observando outros dentistas que nos atendiam nos acampamentos”. Originário da região do Yari, explica-me que migra de unidade guerrilheira de tempos em tempos, para poder atender a maior quantidade possível de “camaradas”. Mas também fica à disposição da população civil das zonas de influência, carentes de atendimento odontológico do Estado. Faz o mesmo durante a conferência, atendendo não só aos jornalistas, como pequenos comerciantes e suas famílias, que estão na área do evento vendendo itens de higiene pessoal, roupas, artigos legais derivados da coca, bijuterias, comes e bebes.  

Pergunto a Mike por que entrou para a guerrilha? “A vida era cheia de dificuldades...”, resume encabulado. Na transição para a vida civil, que estará autorizada após a provável aprovação dos Acordos de Paz em plebiscito nacional em 2 de outubro, os planos de Mike são prioritariamente acadêmicos, mas seguem ideológicos: “Quero ir à universidade e ter um diploma para poder ajudar mais gente... o serviço público não dá essa atenção e os consultórios cobram muito caro”.

A boa fama de Mike se difunde entre os jornalistas e, no dia seguinte a meu tratamento, outra jornalista internacional pede que ele revise um tratamento recente. Mike então detecta que minha colega tem uma mancha num dente frontal. “Mami, tenho um creminho aqui para isso”. Na saída, a jornalista, feliz com o branqueamento relâmpago, tem chance ainda de conhecer a acupuntura elétrica, também disponível na cabana de primeiros socorros. “O rapaz chegou sem mexer a mão e em alguns minutos já havia recuperado os movimentos”, conta.
                                                                
Por segurança, as FARC não revelam a quantidade exata de homens e mulheres em suas filas. Mas afirma que todos estão aptos a assumir funções laborais que vão de atividades na agricultura até mão de obra acadêmica. O comandante do Bloco Sul e membro do secretariado Nacional, por exemplo, era professor universitário da carreira de Zootecnia até compor as filas da organização, em 1985.
Carmen Rivera/Opera Mundi

“A vida era cheia de dificuldades...”, diz Mike quando perguntado sobre o porquê de ter entrado para as FARC
Como Mike, o comandante das FARC, Timoleón Jiménez, também contribuiu para aliviar enfermidades da tropa. Por necessidade da guerrilha, realizou estudos empíricos de medicina. Em uma ocasião, atendeu ao combatente Martín Villa, que foi seu professor quando se integrou às FARC. Timoleón o auxiliou e aliviou seu sofrimento quando Villa foi vítima de paludismo.

Projeto político-eleitoral

Mas as lideranças da organização, mais que definir como vão ganhar a vida, estão às voltas com o projeto político-eleitoral. A conformação de um partido político oficial a partir das FARC é um dos itens do Acordo de Paz e tema da X Conferência. De qualquer maneira, as FARC já terão asseguradas de imediato três cadeiras no Congresso e 10 depois das eleições de 2018, mesmo que não atinjam com votos essa quantidade. Esse aspecto, assim como a ajuda estatal temporária aos combatentes e a anistia, está entre as críticas mais ferozes dos grupos liderados pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que defendem o rechaço aos Acordos de Paz.

O rigor militar que caracteriza as FARC também é aplicado à programação da X Conferência. As “tropas” da limpeza e da cozinha despertam antes de o sol nascer para que as 7h todos os delegados e os integrantes do Estado Maior possam estar a postos para o início dos debates.

A essa hora também se realiza um encontro de um integrante do Secretariado Nacional com os jornalistas, para que recebam detalhes da programação do dia. O acesso ao salão onde acontecem os debates é restrito. Em apenas uma oportunidade a imprensa pôde fazer imagens. No fim da tarde, um secretário responde a perguntas dos jornalistas em uma entrevista coletiva de imprensa.

Depois de décadas em situação clandestina, os membros do secretariado que participaram da delegação de paz passaram a conviver com a rotina de entrevistas e exposição pública. Mas, mesmo depois de quatro anos, as câmaras ainda os assustam.

“Vocês me desculpem o atraso. É que eu pensava que seria uma reunião mais informal, e então me disseram que era com câmeras e tudo mais, e então precisei preparar-me melhor. Vocês sabem que ainda temos um pouco de receio a isso, mas estamos nos adaptando”, afirmou Pastor Alape, um dos secretários, ao abrir a reunião na manhã do dia 20. 

(Com Opera Mundi)

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