Ex-escrivão admite tortura no Dops e no Doi-Codi de SP

                                         


Pela manhã, CNV e USP-Ribeirão apresentaram ao público de São Paulo laudos que desmontam a versão da ditadura para a morte de Arnaldo Cardoso Rocha

O ex-escrivão de polícia Manoel Aurélio Lopes, 77 anos, que elaborou o auto de apreensão de armas e documentos apreendidos com o militante da ALN Arnaldo Cardoso Rocha, morto em 1973, admitiu em audiência pública da Comissão Nacional da Verdade, realizada em parceria com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que viu torturas no período em que trabalhava no Dops (1969-1972) e que sabia da existência de tortura no Doi-Codi de São Paulo, onde atuou, cedido, entre 1972 e 1978.

Lopes foi convocado pela Comissão Nacional da Verdade e respondeu a perguntas do presidente da Comissão Rubens Paiva, deputado Adriano Diogo, do assessor da CNV Márcio Kameoka, do coordenador da Comissão de São Paulo, Ivan Seixas, de Iara Xavier Pereira, que foi companheira de Arnaldo, e de Maria Amélia Teles, assessora da CEV-SP.

Ao ser perguntado se havia tortura no Dops e no Doi-Codi, Lopes admitiu que havia tortura em ambos. Que viu a tortura em que o preso é forçado a se equilibrar, nas pontas dos pés, em latas de leite, com os braços abertos, conhecida por alguns ex-presos como "Cristo Redentor", e a cadeira do dragão, uma cadeira de ferro eletrificada. No Doi-Codi ele disse que não era autorizado a acompanhar sessões de tortura, mas que sabia da prática naquela unidade militar.

Contudo, o ex-policial civil, que admitiu utilizar no Doi-Codi o codinome de escrivão Pinheiro, disse que o caso da rua Caquito, na Penha, em que foram vítimas Arnaldo, Francisco Seiko Okama e Francisco Emmanuel Penteado, era "nebuloso" para ele.

Ao tentar explicar melhor o que seria nebuloso no caso, ele disse haver divergências nas versões das equipes de investigação. Lopes afirmou também que não era comum o Doi elaborar autos de apreensão, muito menos com quatro dias de intervalo entre o episódio e a análise. "Montaram, a meu ver, esse documento, quatro dias mais tarde", disse.

"Lamento que eu não tenha convicção para falar mais", afirmou Lopes, olhando na direção de Iara Xavier Pereira, que foi companheira de Arnaldo e mãe de seu único filho. Ele admitiu ainda que, no Doi-Codi, os escrivães não viam os produtos apreendidos para elaborar os autos de apreensão.

Lopes admitiu ainda que um policial do Dops ser chamado para o Doi-Codi era uma espécie de promoção, pois recebia uma remuneração extra de Cr$ 25 mensais pela tarefa, o que equivaleria hoje a algo em torno de R$ 100, segundo a Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul.

O ex-escrivão contou ainda que o Dops recebia apoio de grandes empresas privadas. Segundo ele, o stand de tiro do Dops foi revestido pela Cofres Bernardini e que os aparelhos de proteção para os ouvidos foram pagos pela General Motors após um acidente sofrido por ele no stand no qual perdeu parte da audição.

A audiência de ontem foi a segunda realizada pela CNV e pela Comissão Rubens Paiva sobre oito casos de mortes de jovens integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) em São Paulo.

Na parte da manhã, a audiência contou com a participação da integrante da CNV Maria Rita Kehl, que se disse impressionada com a qualidade do trabalho dos médicos legistas e peritos, da USP Ribeirão Preto e da CNV que elaboraram, respectivamente, o laudo de exumação dos restos mortais de Arnaldo Cardoso Rocha e uma análise pericial sobre seu caso.

Ambos as apresentações, veja aqui e aqui, demonstraram que Arnaldo foi torturado antes de morrer executado com tiros na cabeça, desconstruindo a versão oficial da ditadura de que houve resistência à prisão, seguida de morte.

O laudo de exumação elaborado sob a supervisão do médico legista Marco Aurélio Guimarães, do Laboratório de Antropologia Forense da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) foi solicitado pelo Ministério Público Federal à Secretaria de Direitos Humanos a pedido de Iara Xavier. O laudo da CNV foi produzido pelo perito da Secretaria de Segurança Pública do DF, Celso Nenevê, e pelos peritos da CNV Mauro Yared e Pedro Cunha.

Pela manhã, o professor universitário Amílcar Baiardi, ex-preso político que integra a Rede Brasil de Memória Verdade e Justiça, confirmou em depoimento à CNV e à Comissão Rubens Paiva que viu Francisco Seiko Okama e mais uma vítima, da janela da sala onde estava preso no Doi-Codi, sendo interrogados, apesar de feridos a bala, por agentes da repressão que entraram na unidade armados e dando tiros para o alto e que xingavam Okama, chamando-o de "japonês filho da puta".

Ele afirma que o fato se deu no início da tarde de 15 de março e que, quando deixou a prisão, confirmou que uma das vítimas seria Okama, única pessoa de origem oriental morto pela repressão naquela data. Baiardi foi integrante da Colina e da Var-Palmares e não tinha ligação com a ALN.

Segundo Baiardi, os dois jovens foram deixados com vida no pátio do Doi-Codi, onde agonizaram até a morte. Depois, os corpos foram recolhidos pelo IML e um faxineiro limpou o sangue. Baiardi, contudo, diz que, em virtude dos ferimentos na outra vítima, não tem condições de dizer se a outra vítima era Arnaldo ou Francisco Emmanuel Penteado.(Com a CNV)

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